sábado, 23 de março de 2013

A Criança Que Sobreviveu



 Nós seres humanos nascemos bebêzinhos com pouquíssima capacidade cognitiva e vamos de acordo com o desenvolvimento neurológico e psicológico formando tudo que nos define como pessoa. A criança vai crescendo, passa por várias fases, bem reconhecidas e estudadas, algo que aqueles que conviveram com mais de uma criança enquanto esta crescia conhecem bem, pois viram acontecer com pessoas tão próximas. Aquilo que forma um ser humano vai se acumulando,  nos tornamos mais complexos e intelectualmente sofisticados à medida que nosso inventário de idéias, conceitos, habilidades, percepções aumenta com as experiências, aprendizados, descobertas.

Mas é um erro achar que o adulto é a borboleta que deixou o casulo da infância para trás. O grau de amadurecimento de uma pessoa não é linear, as pessoas podem se desenvolver nos vários  campos de habilidades, conhecimentos, percepções em momentos diferentes, de acordo com as oportunidades que surgem para isso, de acordo com os desafios que lhe são propostos pela vida, de acordo com o nível de interesse e de capacidade de germinar as sementes de crescimento pessoal que surgem em sua vida. Assim, a mutação de criança para adulto não é algo que possa ser marcado por um rito de passagem, algo que existiu em tantas culturas. Por vezes, nos surpreendemos vendo crianças de 8, 9 anos se dedicando a reflexões sobre a vida, sobre as pessoas com um nível de sabedoria que muitos adultos não tem, ocupados que estão com o atendimento das demandas de sua vida (compromissos profissionais, acadêmicos, o atendimento da expectativa de pessoas próximas).  Viver apenas em função do que uma pessoa tem que fazer pode transformar as pessoas em algo muito próximo das formigas que carregam folhas em uma pracinha.

Essas formigas fazem seu serviço sem distração, totalmente ignorantes de que além daquela pracinha há todo um mundo, com montanhas com milhares de quilômetros de altitude, praias, fossas abissais nas profundezas dos oceanos, e até que um carrinho-robô anda na superfície de Marte. Há pessoas que vivem assim, uma vida de formiga: acordam, tomam banho, se alimentam em minutos, entram nos seus carros e se conduzem nos engarrafamentos, trabalham o dia inteiro e depois vêem TV antes de dormir, totalmente ignorantes das várias dimensões espirituais e intelectuais que encerram dentro de si como sementes do que pode vir a ser. Há pessoas que perdem a capacidade de brincar de viver, e passam a buscar fontes externas de algo que preencha sua necessidade de encantamento, de preencher as horas vagas disponíveis para diversão com algo que não dê muito trabalho, ou de acumular coisas que aumentem o seu grau de contentamento com a própria vida.

"Quem tem bastante no seu interior, pouco precisa de fora" Johann Goethe

Um adulto é mais completo quando a criança que ele um dia foi sobreviveu às tantas experiências que ele viveu. Experiências que trazem um patrimônio de coisas boas, como já saber o que fazer em uma situação igual ou parecida a uma vivida no passado, agilidade para identificar o que está acontecendo e a atitude mais adequada para aquela situação, inclusive quais situações evitar. Mas a experiência pode também deixar um patrimônio de coisas que nos amarram, como medos, traumas, ressalvas, noções pré-definidas que colocam muito apressadamente coisas novas no mesmo saco de outras que já passaram.

Se trata de saber ser adulto, aprendiz da vida em constante busca de crescimento e evolução mas sem se desfazer da criança que foi. Há tantas coisas na nossa criança interior que fazem bem ao nosso crescimento!


A leveza de não carregar preconceitos, e aqueles pré-conceitos de reconhecer o todo pelas partes, de classificar as pessoas por sinais que percebidos, fazem com que coloquemos aquelas pessoas em determinadas gavetas, devidamente rotuladas. As crianças não estão contaminadas com os não que muitas vezes nos impomos. Uma criança aceita e interage com o sorriso de alguém que sorri para ela sem julgar a pessoa, sem a tentativa de enquadrá-la em uma classificação que determinará suas reações.

A espontaneidade com que elas se envolvem nas oportunidades que surgem nas suas vidas, aquela coisa de estarem sempre abertas para as brincadeiras, onde se aprende brincando.

Aquela imensa e incansável sede de aprender, de descobrir como se faz, os vários porquês que fazem com aquilo seja daquele jeito e não de outro, de querer saber o nome de tudo. A experiência de aprendizagem da criança é uma atitude contemplativa, de esponja que procura absorver o máximo sem julgamento, sem o ruído do "isso eu já sei", que pode acabar distorcendo a percepção das coisas.

O adulto completo é aquela pessoa na qual a criança sobreviveu à vida vivida e está de braços abertos para a vida por vir, para quem o futuro é uma brincadeira nova. O adulto que sabe que não é a seriedade que o separa de uma criança, que vive-se por inteiro, adulto e criança, é capaz de amadurecer de formas que aquele que enterrou sua criança interior simplesmente escolheu ignorar.

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